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Voluntariamente autista, sociável com trouxas, fluência em melancolicês. Não tem dom de se expressar pela fonética, mas ama a escrita mesmo sem saber juntar a multidão de letras que seguem suas células. Apenas uma alma muda na imensidão de vozes.

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sábado, 9 de março de 2024





Ilustração Haylee Morice.

 

segunda-feira, 12 de fevereiro de 2024

 


    Edgar Allan Poe escreveu num de seus poemas que tudo que ele amou, amou sozinho. Eu aprendi muito isso, o quanto amar é solitário. E doloroso. Mas eu amei mesmo assim. Amei mesmo sabendo o quanto dói mas eu cansei de doer, cansei de andar sozinha enquanto olho todos felizes, brincando e sorrindo no parquinho longe de mim, sempre aqui do outro lado, escrevendo para salvar minha vida. Eu sempre fui uma espécie de receptáculo para as pessoas, elas vinham em busca de consolo, paciência, acolhimento da calma, bondade e amor, lealdade e companheirismo, eu não sei mas sempre tive mesmo sem receber de sobra. Eu criei essa fortaleza que todos procuravam de amor, mesmo eu parecendo tão solitária de vez em quando aparecia alguém assim. Eu protegi em minhas asas e senti medo por elas, eu recebi suas dores como minhas, eu sangrei, eu me importei. Está tão frio hoje aqui dentro de mim, nos meus ossos, na minha pele e dentro da minha cabeça, é difícil dizer o quão doloroso é acordar assim, com esse frio da solidão, do abandono, da rejeição, contraditoriamente a essas pessoas que iam e vinham, elas tinham outras pessoas e eu sempre ficava sozinha depois porque eu dizia a mim mesma, eu sei lidar com minha própria solidão, eu e ela somos companheiras a vida inteira, ela sabe meus segredos, meus desesperos, meus medos, minhas fraquezas sem me julgar, mas eu nunca deixei de receber um desses pássaros feridos que passam uma temporada em meu coração buscando cura antes de me deixar. Eu nunca prenderia um passarinho em uma gaiola. Até porque eu sei o que é estar em uma gaiola, eu sempre aceitava a partida até não aguentar mais esconder de mim mesma a triste verdade de só precisarem de mim por um tempo. Meu corpo, minha gaiola. Eu vi ele livre uma vez apenas. Fora de mim, em outro, no corpo de outro. Os pássaros feridos, sempre vão embora, e a minha dor quando um chega é pensar quanto tempo esse ficará, ele está aqui apenas para receber, eu sempre fui boa em cuidados, cuidar das pessoas, eu quase fui enfermeira, quase fui médica. Eu desisti. Mas você tinha tanto talento sempre dizem, pode ser, mas nem tudo que temos talento é o que é para nós, é o que conseguimos fazer, é o que queremos seguir. Eu usei todo meu talento nos meus avós, nos meus familiares, toda minha preocupação e cuidado. Eu fiz o meu melhor, e no processo, amadureci, tive experiencias com a vida e com a morte. Principalmente a morte, que antes eu temia tanto como uma sombra sobre mim desde a infância e pelo excesso de medo de que um deles morresse se eu não desse o meu melhor, se eu não fizesse tudo certinho, mas essas coisas nem sempre dependem de nós e eu me cobrei bastante mas não me arrependo do meu trabalho bem feito e das noites angustiadas e de dores no corpo e na alma, eles estavam vivos mais um dia e eu podia lhes mostrar o carinho e o amor mais um dia, ensinar algo que eu tinha em mim pra compartilhar com eles, a delicadeza, a doçura, a atenção, a sensibilidade e empatia, qualidades que acho que tenho e que sempre ousei usar em excesso. 

    A morte me ensinou que ela vem para cada um de uma maneira, eu vi duas mortes completamente diferentes, eu interpretei como quando alguém está pronto para ela e já estava esperando e consegue ir em paz enquanto outro não estava pronto e lutava contra ela, não sei como ela é, mas é triste em ambas as visões, o silêncio cansado, o nada, o vazio. Dizem que quem decide morrer, porque a morte não está em nossas mãos, vai para algum lugar aí ruim, acho muito indelicado de se dizer tal coisa. Você só sabe que é comido pelos vermes e se junta a terra e ao ciclo da natureza, o que mais viu além disso. Dizem que é egoísmo decidir ir embora da terra, decidir a hora da partida, que não está em nossas mãos esse destino, bem eu não gosto de surpresas e mudanças repentinas ainda mais se forem muito ruins, morte planejada. Eu queria mesmo ir embora desse planeta talvez por isso penso que é melhor virar partícula do que ficar presa aqui nesse chão, me solte no espaço astronauta, deixe eu orbitar, até chegar ao espaço interestelar. 

    Eu te digo, a morte é egoísta, ela não pensa em quem você é ou o que fez, em que ou quem ficar, ela só leva, as vezes nem dá a chance de se despedir, de ir em paz, de ser sem dor. Não temos poder sobre a vida e a morte de nenhum outro ser humano nem de nós mesmos, nos ensinaram, mas fazem filhos criam a vida sem planejar, tudo lições fracassadas e sem sentido, e tiram a vida uns dos outros pior do que animais selvagens, egoístas iguais. Eu sempre escolhi a vida. Mas a vida não sei se anda escolhendo a mim, me sinto cada vez mais distante dela, isolada, com muito frio por dentro, em meus ossos, uma melancolia e tristeza profunda que pouquíssimos poderiam entender, é como se eu estivesse viva e esquecida em um necrotério, sentindo muito frio, muita solidão, muita consciência de tudo que sinto e de seus significados. Está muito frio, eu repito, as vezes é difícil acordar com essa consciência de frio em plena luz do dia, então eu choro bastante porque o frio abre um buraco de doer e dentro desse buraco o frio puxa para dentro, range em meu peito violentamente, não há nenhum abraço ao redor, é triste como estar presa em um necrotério viva.   

    Eu só estou escrevendo caso aconteça alguma coisa triste, eu que sempre fui medrosa começo a perder tudo até isso, eu pensava comigo mesma, o medo te salva de muitas coisas inclusive de ainda estar aqui nessa terra. Mas eu ainda estou esperando algum resquício de esperança que me prenda aqui, porque está cada dia mais difícil acreditar em mim e no amanhã, por mais que invente meu futuro não me parece real e palpável. Eu queria dizer que eu quis muito um abraço esses dias em que eu pudesse chorar sem parar, berrar de boca aberta todos esses ecos, é assim que eu choro de gritar mas ninguém ouve, acho que nunca tive isso, poder ser fraca e cair em um abraço sem hesitação, aceita. Esses dias tenho tomado banho frio mas era na água quentíssima que eu queria repousar meu corpo, queimar a tristeza da minha pele, sinto falta do seu abraço. Eu existo mais aqui escrevendo, eu sinceramente queria ficar no meu quarto para sempre assim como Emily Dickinson se isolou em si mesma e em seus poemas e vestia branco. Mas está tudo apertando. Eu não devo desculpas, eu passei a minha vida toda me desculpando, me culpando. Vai doer a minha falta? O meu potencial desperdiçado, a minha juventude perdida? É isso? Eu sempre me senti velha demais, cansada demais, sempre achando que ia morrer cedo e jovem. Você estava olhando direito? Eu andava murchando e me alto regando, sou uma jardineira da alma, por isso cuidei tanto desse jardim interior que poucos entraram ou realmente quiseram ver, eu ainda o protejo. Gosto do título O Jardim Secreto, eu sou ele. Mas agora eu estou me fechando cada vez mais, num ponto sem retorno, eu queria acreditar que esse jardim sobressaísse meu corpo porque está tão frio, eu queria ver a primavera do lado de fora uma vez. 

    Eu perdoei meus pais por tudo, meu coração está puro apesar de que ando com raiva, me mostro irritada quase explodindo, como se ninguém pudesse me tocar, muda, ou exigente demais, é que estou tão machucada que estou erguendo as minhas defesas, está tudo muito doendo, então eu fecho a cara mas também choro sem pudor, me derramo, está tudo bagunçado, eu sou duas dentro de uma, as vezes é muito cansativo mudar, transitar, metamorfosear, estou cansada. Não sei mais o que quero ser. Realização, um amor pra vida toda, casa dos sonhos, acho que não consigo sozinha agora que você me deixou, já gritei demais, eu sonhei demais e eu quis tanto ser real, esses dias ouvi o comentário infeliz de que eu "deixei o tempo passar demais" mas tudo que sou é invisível, tudo que sinto é rejeição do mundo inteiro, erro de estar vivo, me sinto tão sozinha, eu não consigo mais, vocês não podem ver como está tudo dolorido aqui dentro, eu sofri demais aqui dentro de mim mas não sei porque, nasci com essa ferida na alma, essa doença rara, esse amor inconsolável. Faz tempo que eu não sei o que é sorrir de verdade, sorrir profundo, sinto como se meu rosto todo desmoronasse algumas vezes, tudo fora do lugar e minha boca tão pra baixo mesmo que eu me esforce para sorrir. Ando triste vendo as pessoas fazerem planos, eu sempre estive tão solitária nesses planos, doía tanto porque tudo sempre ficava pela metade e era muito esforço que eu fazia para encontrar soluções e começar tudo de novo, eu não conseguia me realizar, não sei o que é isso, vivo muito na minha imaginação e ninguém vai me aceitar no mundo assim. Outro amigo vai se casar, e me dói lembrar toda a minha rejeição profunda, não quero viver para ter que ver você de longe sendo feliz sem mim, já vivi demais assim, do outro lado, eu quero ir embora pra sempre, e independente disso todos seguirão e continuarão e serão felizes sem mim, eu sei disso, "a realidade não precisa de mim". Estou chorando tanto porque dói sentir todo esquecimento, você se tornar um nada, em vida é pior do que a morte muitas vezes, será que alguém entende essa dor, não é todo esquecimento que me dói, me dói é ninguém se lembrar todos os dias que quer me amar, me dói ver que ninguém faria isso por mim, de todas as escolhas, escolher a mim, me dói esse esquecimento, dói como a morte. Porque eu queria, mas só vi nos outros acontecer, mas eu nunca pude fazer nada, só chorar comigo mesma, a minha dor.

    Do outro lado desse mundo, como um planeta feito pra estar distante do Sol, do sistema solar exterior, eu gosto de Netuno e Uranus. Mesmo que eu estivesse do lado de dentro me sentiria errada, talvez já tentei muito estar mas nunca fiz parte desse sistema, eu vivi sobre a imaginação de não ser daqui, cresci com esse sentimento reforçado até por algumas palavras, mas não acredito em paraísos, acho que nunca acreditei. Há muitos lugares inefáveis aqui, Emily Dickinson diz sobre tudo o que é incógnito se valia a pena ir a sós, ver sozinho tantas maravilhas e não ter pra quem olhar pra o lado e dizer, está vendo isso também, era essa a vida que eu sonhava. É assim que me sinto toda vez que olho pro lado e você não está aqui, eu não te esqueci e faz tanta falta não poder compartilhar a vida que eu poderia ter tido, de ter algo lindo para cuidar e ver crescer, mas se não é com você não quero passar por isso de novo, você vai me esquecer como todos e eu vou estar aqui presa do outro lado sempre olhando, mas eu posso fechar meus olhos de uma vez por todas, descansar dessa dor, dessa solidão. Eu sei que você é uma boa pessoa, mas as palavras me machucam muito, eu sinto muito cada mudança ruim, eu não sirvo mais para esse mundo. 

    Sinto falta da minha avó, e do elo de amor verdadeiro que vi dentro dos olhos dela. Também sentiria muita falta da minha mãe apesar de tudo e é melhor eu ir embora antes, eu continuo a criancinha preocupada na escada esperando a chave rodar ao escurecer e se aliviar que sua mãe chegou, eu queria poder te levado pra longe e ver você se sentir valorizada e amada, eu não consigo usar minhas palavras em voz alta as vezes e tão pouco minhas ações, eu faço muito pouco, eu não tenho nada e já não tenho tanta energia nem para as tarefas de casa e obrigada por suportar meus fracassos, minha falta ânimo e muitas vezes fazer por mim. Tem tanto sobre mim que talvez saibam tarde demais ou talvez seria melhor não saber. Eu sempre serei a irmã preocupada, eu nunca guardo ódio em meu coração, mesmo quando me ferem, então eu ainda desejo que meus irmãos de sangue cresçam melhor do que eu, sejam melhor do que eu, eu quero o melhor pra eles e fico orgulhosa por ver crescerem mais do que eu. Eu sinto que não cresci o bastante pra essa vida, nada parece precisar de mim, o que é uma distorção, mas meu coração está acabado, eu não consigo acreditar mais em mim, existe alguma mão que me levante desse chão, eu só vejo costas. O que vocês vão se lembrar de mim quando revirarem meu quarto, minhas palavras, minha alma, será que alguém vai procurar os meus pequenos tesouros escondidos. Eu só pude deixar poesia, eu só pude deixar amor embalado, eu só pude deixar um olhar gentil e cheio de perdão, eu só pude me deixar. 


    

quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

 


    E se dessa vez eu desistisse para sempre. Não mais amanhãs. Não mais me sentir perdida entre rostos e falas. Não mais me sentir de outro tempo, de outro mundo. Não mais acordar. Dormir para sempre. Eu sempre gostei de adormecer, talvez morrer dormindo seja o que todos sonham, da sensação entorpecente do quase, mas não, nunca gostei do súbito medo de desmaiar e perder a consciência. Contradições, eu sou medrosa e corajosa ao mesmo tempo. Não é desrespeito a mãe natureza desistir para sempre de ser carne, todos nós precisamos parar e pensar na morte por um instante e escrever como se estivesse perto do fim quem sabe para então valorizar o que tem. Eu penso que quero ser partícula outra vez, eu penso em voar esfarelada ao vento, me assoprar. 

    Essa é uma carta para não temer a morte, pois sim, eu a temo, respeito, me escondo, tento me proteger e ser imortal. Emily Dickinson em sua ousadia escreveu, "Porque não pude parar para a Morte – Ele parou para mim por bondade – Na carruagem só íamos Nós –E a Imortalidade." De algum jeito ela saberia que viveria e perpetuaria por suas palavras, ela confiou ao futuro seus sentimentos profundos. Eu não sou tão grande, sou pequena minha amiga Emily, mas desde cedo aprendi gentilmente com a morte, com a nossa fraqueza humana, nosso pouco tempo. Eu me desespero, sempre achei que teria pouco tempo aqui nessa terra, eu exagero, eu deixo tudo sair para não me arrepender de nem uma palavra não dita, não que eu fale tanto e o tempo inteiro mas algumas vezes saem muitas palavras, eu quero parar o tempo, eu quero voltar no tempo, eu quero fazer futuros, tudo no poder das palavras, meus dedos a única ferramentas que tenho de fazer acontecer o impossível, de me fazer ser vista, de me fazer real. Você acredita em mim onde você estiver que eu estou tentando tanto me materializar além dessas letras desengonçadas e cheias de erros e excessos, você acredita no quanto elas são verdadeiras e gritam e querem nascer e não morrer? 

    Eu em minha teimosia não quero que meu tempo seja roubado de mim, que minha vida seja roubada de mim, tirada a força bruta, que tudo pare sem sentido e inesperado, controlar sua própria morte, seu ponto final, antes do medo de se ver deixando as coisas pela metade, um silêncio sem explicação, a vida é triste nesse sentido. E alguém me disse que eu tenho uma inata inclinação a explicar detalhadamente tudo, principalmente, as coisas que sinto, como se sentisse necessidade de apalpar o invisível, o silêncio, o abstrato, o subjetivo de mim.

    E se eu pudesse ter tempo de deixar tudo anotado, tudo do jeito que quero, como um testamento. Sim, mas sem heranças (talvez pequenas lembrancinhas inúteis) mas os últimos desejos de alguém que decidiu ir embora desse mundo e o mais importante que partiu em paz e de forma indolor do jeito que esperava. Não sei como, talvez esse dia chegue, eu estou deixando por escrito que amo margaridas e odeio aquelas guirlandas feias de flores mas uma coroa de flores na minha cabeça e um vestido branco como uma noiva meio bailarina que eu nunca imaginei que fosse mesmo acontecer, sapatinhos delicados de boneca, espero que eu deixe meu cabelo colorido, porque o arco-íris é a minha essência do outro meu lado do preto. Eu sempre deixei claro que não quero ficar embaixo apodrecendo na terra, eu não quero ir embora desse jeito, eu quero ser cremada, doar meus órgãos que sirvam, e virar pó de fada se sua imaginação puder sonhar comigo brilhando ao soprar ao vento um dia. Eu não quero ninguém olhando para mim em um caixão pois sou tímida até a morte, então por favor, não faça esse desrespeito a mim, vou deixar uma foto especial para olharem e me verem com meus olhos que apesar da escuridão que os tomava de repente sempre foram sonhadores, inocentes, puros em algum lugar. Eu queria tanto ter vivido uns cem anos ao seu lado. Eu queria tanto ver para que o amor serve. Eu queria tanto saber o que o amor poderia ser. Por enquanto eu não quero morrer, é só uma carta, eu sou o tipo de suicida que desisti de si mesmo em vida, que desiste dos sonhos, e eu também vou desistir do amor se você me deixar, desistir de acreditar sozinha. Eu já deixei de acreditar em tantas coisas, mas a morte continua soberana e o que há depois de lá também. Eu não sei pra onde vou, na morte só há o silêncio, vamos ouvir um pouco mais de música então Eu penso nos meus gatinhos sem mim, no meu quarto cheio de tesouros pequenos da natureza que vão pro lixo talvez, nos livros que são tantos para se ler ainda, na natureza que poderia ser desbravada ainda. Queria que fosse meu companheiro de vida, não queria mais outras pessoas entrando e saindo do meu mundo particular, é tão doloroso que eu só quero desaparecer, pra algum lugar onde ninguém me conheça, eu poderia ir embora agora mesmo do mundo, mas ainda penso nesse lugar, ele não está longe, vou continuar solitária lá? Essa tristeza e vazio de um mundo que te exige esforço e trabalho constante vai me fazer infeliz lá? Não é esse tipo de vida que quero, eu quero um milagre, eu quero um sim. Vida me dá um sim! Antes que eu morra por mim mesma, é tão fácil morrer. Eu só quero um sim. Eu quero uma continuação constante até eu poder embora por conta própria.

    Então eu olho para as plantas e todas as coisas fofas que decoro ao meu redor pra fazer dessa tristeza um chão macio de cair. Essa ainda não é minha carta final, mas quem sabe, ter um lugar lindo pra morrer, é tudo que eu planejo e desejo no meu fim. Enfim, morrer como uma princesa, a bela adormecida. 


   

sexta-feira, 5 de janeiro de 2024



Há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo, fique aí, não deixarei
que ninguém o veja.

Há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas eu despejo uísque sobre ele e inalo
fumaça de cigarro
e as putas e os atendentes dos bares
e das mercearias
nunca saberão que
ele está
lá dentro.

Há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou duro demais com ele,
eu digo,
fique aí, quer acabar
comigo?
quer foder com minha
escrita?
quer arruinar a venda dos meus livros na
Europa?

Há um pássaro azul em meu peito que
quer sair
mas sou bastante esperto, deixo que ele saia
somente em algumas noites
quando todos estão dormindo.
eu digo, sei que você está aí,
então não fique
triste.

Depois o coloco de volta em seu lugar,
mas ele ainda canta um pouquinho
lá dentro, não deixo que morra
completamente
e nós dormimos juntos
assim
com nosso pacto secreto
e isto é bom o suficiente para
fazer um homem
chorar, mas eu não
choro, e
você?

Charles Bukowski
(Tradução de Pedro Gonzaga)


(Eu choro, amor, na verdade eu grito. Eu quero que todos saibam que eu voo em seu peito, quero sair e voar sobre você, voar com você, lembra do nosso céu azul. Eu quero cantar mais alto em seu peito sem restrições e limites, eu quero o infinito sentir. Eu não quero ser um pássaro escondido).



quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

 


Eu não sei escrever sobre você,

Tudo se converte internamente 

Como uma súplica, 

um pedido que não é muito silencioso

Meus sentimentos são altos, 

isso eu sempre soube

Eu assusto mas eu grito 

Eu grito porque pra você eu não queria estar invisível 

Eu quero que me veja

Eu quero que me sinta

Eu quero que me deixe entrar e ficar

Eu quero parar o tempo com você 

Eu não tenho vergonha de pedir

Pedir o amor que tanto espero

Como quem pede em uma oração por um milagre

Eu não sei escrever sobre você

Porque você foi feito pra existir além das minhas palavras 

Você foi real, palpável, tátil 

É onde eu quero escrever

Nessa realidade que me é negada

Clarice Lispector também gritava

Intensamente selvagem:

"Eu te invento, realidade".

Eu invento, 

Eu fantasio, 

Eu imagino, 

Eu romantizo, 

Eu poetizo, 

Eu escrevo, 

Eu pinto e bordo, 

Eu crio e recrio,

Eu vagueio

Eu eternizo.

E assim eu não sei escrever sobre você 

sem te dar todo infinito de minhas mãos 

que tanto acariciaram suas costas cansadas.

Eu não sei escrever sobre você, 

eu quero me escrever em você, 

viver em você escrevendo, 

eu não desisti da palavra: 

você. 



terça-feira, 21 de novembro de 2023



  Ilustração by Heo Ji-seon.




sexta-feira, 27 de outubro de 2023



Me deram um coração 
plantinha silvestre
Rasteira
Quase invisível 
Alguns olhares 
despreparados olham e dizem: 
"isso aqui é só mato".
Olham e veem só mato?
Me deram um coração 
plantinha silvestre
porque sabiam 
que eu ia precisar dele 
mesmo não gostando 
de ter que sempre aparar tudo
Para não verem tudo que posso ser
Eu aprendi a me podar
Cortar e encolher
Um coração de erva danosa acham
Quem dera mesmo uma hera venenosa 
Uma planta praga dizem 
quanto mais se arranca 
mais impregna e se espalha por tudo
Uma plantinha teimosa 
que continua a crescer 
Tenho que fazer a limpeza mas tudo cresce muito e rápido
Quantas vezes me vi arrancada 
e do mesmo lugar renasci
A mesma florzinha 
minúscula
Mas em sua pequenez
Uma cor rasteira 
Em meio ao verde vasto 
É tão fácil me pisar
A parte gostosa e macabra
é sentir a mão se afundar lá no fundo 
caçando minhas raízes pra arrancar 
É uma dor deliciosa sentir os beliscões de filamentos de raízes grudadas sendo exposto do lado de fora
Veja 
Eu sou 
Maior do que você pensava
Aqui dentro dessa terra
Minhas raízes em suas mãos 
Meus cabelos cacheados 
Abaixo de tudo 
Meu segredo
Minhas sementes dormentes 
Infinitas elas ainda se revelam 
Me chamam de praga 
Mato selvagem 
Eu atrapalho
Eu sou essa praga sentimental
Eu renasço
Não sou erva daninha
Eu sou resistência.
Eu sou o amor renascendo 
em suas mãos duvidosas 
de que eu ainda existo.


De sua bruxa verde,
seja minha abelha.